O objetivo desse pequeno artigo não é responder à pergunta sobre em que
aspectos as correntes teológicas, Arminianismo e Calvinismo, estão ou
não de acordo com as Escrituras. Não que isso seja irrelevante; na
verdade é muito importante. Mas sobre esse assunto já existe material
vasto disponível e talvez eu não tenha nada novo a acrescentar. Meu alvo
é mostrar como essas duas abordagens estiveram presentes na história
dos Batistas e propor de que forma os batistas atuais poderiam lidar com
elas para promover a edificação da igreja, a fidelidade à ordem de
Cristo e consequentemente a glória de Deus.
Considerando a narrativa mais historicamente documentada sobre a origem
dos batistas, o grupo surge em 1609 na Holanda, tendo como líderes o
pastor John Smith e o advogado Thomas Hewlys. Apesar de terem saído do
movimento Puritano Separatista inglês, rejeitaram o Calvinismo e, talvez
por influência dos Menonitas (um ramo dos Anabatistas), adotaram uma
soteriologia Arminiana.
Na Curta Confissão de Fé de John Smith (1609), ele escreve que a
graça de Deus é “oferecida a todos sem distinção”. Além disso, os seres
humanos seriam capazes de “resistir ao Espírito Santo” e também de se
separar de Deus, perecendo para sempre. Já na Confissão de Fé de Thomas Hewlys (1611),
foi escrito que Deus “predestinou que todos que cressem nEle fossem
salvos”. E, também, que o ser humano pode cair da graça de Deus.
Em 1638, já na Inglaterra, surgem os primeiros Batistas Calvinistas,
denominados Batistas Particulares (enquanto os Arminianos foram chamados
de Batistas Gerais), também a partir dos Puritanos Separatistas. Esses
batistas primeiro elaboram a Confissão Batista de Fé de Londres (1644)
que estabelece que “Deus, antes da fundação do mundo, predestinou a
alguns homens para a vida eterna, por meio de Jesus Cristo, para o
louvor e glória da sua graça, havendo destinado e abandonado os demais
em seu pecado para sua justa condenação”. Essa confissão foi revisada em
1646.
Em seguida, os Batistas Gerais produziram o documento Fé e Prática das Trinta Congregações (1651), onde declaram que Cristo “sofreu a morte por toda a humanidade”. Por seu turno, os Batistas Particulares publicam a Segunda Confissão de Fé de Londres (1677),
que foi revisada em 1689. Este documento dispõe que “alguns homens e
alguns anjos são predestinados (ou preordenados) para a vida eterna
através de Jesus Cristo, para louvor da sua graça gloriosa”. E completa
que “os demais são deixados em seu pecado, agindo para sua própria e
justa condenação, e isto para louvor da justiça gloriosa de Deus”.
Os Batistas Gerais ainda produziram a Confissão Padrão (1660) e o Credo Ortodoxo (1678). E os Batistas Particulares elaboraram também a Confissão de Fé de Midland (1655) e a Confissão de Fé de Somerset (1656). Todas mantendo a mesma linha soteriológica.
Como se observa, os dois grupos surgiram separados e assim se mantiveram
durante algum tempo. Entretanto, finalmente perceberam que tinham
objetivos comuns e que poderiam aumentar a efetividade de suas ações se
unissem forças. E foi assim que em 1891 os Batistas Particulares e
Gerais se uniram, formando a União Batista da Grã-Bretanha, com o
objetivo de “produzir igrejas saudáveis e integradas à missão de Deus”:
fazer discípulos e abençoar a comunidade.
Nos Estados Unidos, chegam primeiro os Batistas Particulares, que também
eram oriundos do movimento Puritano. Espelhando-se nos irmãos europeus,
estes produziram, inspirados na Segunda Confissão de Fé de Londres, a Confissão de Fé da Filadélfia (1742). Também produziram a Confissão de Fé de Sandy Creek (1758).
Juntamente com o desenrolar do Grande Avivamento do século 18, cresceu
consideravelmente o número de Batistas Gerais nos Estados Unidos. Estas
igrejas também começaram a preparar suas próprias confissões de fé.
Assim, produziram os Artigos de Religião da Nova Conexão (1770), que defendia que a salvação era oferecida a todos, sem exceção.
Com o tempo, com a intenção de estabelecer uma sociedade missionária que
envolvesse um grande número de Igrejas Batistas, surgiu a Convenção
Trienal, em 1814, composta tanto por Batistas Gerais quanto por
Particulares. Essa organização adotou a Confissão de Fé de New Hampshire (1833), que buscava conciliar as duas visões.
O texto da confissão diz que “as bênçãos da salvação são oferecidas
gratuitamente para todos” e que é “dever de todos aceita-las”. Além
disso, afirma que “nada impede a salvação do maior pecador na Terra, a
não ser sua própria depravação e rejeição voluntária do evangelho”.
Também diz que a eleição era “o propósito eterno e Deus, de acordo com o
qual Ele graciosamente regenera, santifica e salva os pecadores, e isso
em perfeita harmonia com a livre agência do ser humano”. Por fim, a
confissão declara que “apenas os verdadeiros crentes perseveram até o
fim” e que “eles são mantidos pelo poder de Deus”.
Essa confissão passou a ser amplamente aceita pelos Batistas dos Estados Unidos e influenciou diretamente o texto da Mensagem e Fé Batista (1925),
que é a confissão de fé da maior denominação Batista do país, a
Convenção Batista do Sul. Nos Estados Unidos, as divisões que ocorreram
entre os grupos Batistas se deram não mais pela soteriologia, mas por
outras questões, como a escravidão e o liberalismo teológico.
Com isso, os Batistas em geral se distanciaram tanto do Arminianismo
quanto do Calvinismo clássicos, e produziram uma teologia própria, que
sustenta a depravação total do ser humano, a possibilidade de salvação
para todos e a perseverança dos santos. Em 2010, o presidente e outros
integrantes do Seminário Teológico do Sul publicaram um ensaio
intitulado Nem Calvinistas nem Arminianos, mas Batistas. Uma
pesquisa realizada em 2012 entre os pastores da Convenção Batista do Sul
mostrou que a maioria (65%) não se identifica nem como
Arminiano/Wesleyano nem como Calvinista/Reformado.
A Confissão de Fé de New Hampshire também influenciou diretamente a Declaração Doutrinária da Convenção Batista Brasileira (1987),
que estabelece que aprouve a Deus salvar, à luz de sua presciência,
aqueles que “aceitariam livremente o dom da salvação”. O texto também
afirma que “ainda que baseada na soberania de Deus, essa eleição está em
perfeita consonância com o livre-arbítrio de cada um e de todos os
homens” Além disso, dispõe que “os salvos perseveram em Cristo e estão
guardados pelo poder de Deus”. Assim como nos Estados Unidos, a questão
soteriológica não tem sido motivo de divisão entre os Batistas
Brasileiros, como foi a questão pentecostal, por exemplo, na década de
60.
Essa mesma tendência pode ser observada em outros países do mundo que
tem grande presença dos Batistas. Nas maiores associações Batistas em
Mianmar, com cerca de 1 milhão de membros, e na Índia, com quase 3
milhões, há harmônica convivência entre as diferentes visões
soteriológicas.
Diante deste panorama, é possível observar que a grande força dos
Batistas foi justamente sua humildade. Apesar de começarem como
Arminianos e se desenvolverem também tão bem como Calvinistas, os
Batistas reconheceram que a dificuldade em estabelecer em todos os
detalhes uma doutrina sobre a salvação não lhes permitiria permanecerem
unidos e cooperando na obra missionária e social. Os Batistas entenderam
que havia o risco real de tal discussão tomar mais tempo que o
cumprimento da ordem de Jesus em si: fazer discípulos e ser sal da terra
e luz do mundo.
Não se tratou de preguiça mental ou de desprezo pelas Escrituras. Os
Batistas tiveram uma excelente safra de pensadores, que produziram
profundas obras teológicas, inclusive no campo da dogmática. Mas também
reconheceram a limitação da razão humana e confessaram a grandeza
inescrutável de algumas verdades da Palavra de Deus.
Não é também que os Batistas ficaram "em cima do muro". Eles se
posicionaram. Rejeitando o pelagianismo e o semi-pelagianismo, os
Batistas declararam que a Escritura é a única fonte de autoridade da
qual devem ser tiradas as verdades relativas à salvação, por exemplo,
sobre a corrupção humana (Romanos 3.12), a inutilidade das obras e a necessidade da graça (Efésios 2.8-9), a iniciativa divina (João 6.44), a ordem de pregar a todos (Marcos 16.15) e que os crentes estão guardados por Deus (1 Pedro 1.5).
Normalmente, essas doutrinas deviam ser subscritas por todos aqueles
que quisessem fazer parte de suas associações e convenções.
Entretanto, reconhecendo também a complexidade de sistematizar verdades
eternas tão profundas e, respeitando a autonomia das igrejas e a
consciência do indivíduo, os Batistas permitiram que os crentes e suas
comunidades tivessem liberdade para pensar sobre essas questões, desde
que dentro dos limites das Escrituras. Por isso, não se pode dizer que
os Batistas devam obrigatoriamente ser Arminianos ou Calvinistas. Desde
que mantenham, além das verdades expostas no parágrafo anterior, os
princípios do credobatismo, da separação entre igreja e Estado, do
simbolismo das ordenanças, da autonomia da igreja local e da liberdade
de consciência, eles podem ser tanto um quanto outro e continuar sendo
Batistas.
Diante da riqueza da Palavra de Deus, da incapacidade da mente humana,
do fato de a discussão já se arrastar por séculos e de que crentes
altamente capazes e piedosos fizeram parte das duas correntes de
pensamento, os Batistas perceberam o risco deste debate sobre qual linha
teológica ser mais bíblica ou fiel produzir vaidade e um certo “orgulho
espiritual”, criar mais calor do que luz e levar a mais divisão do que
esclarecimento. A pregação e os diálogos eclesiásticos poderiam se
tornar tão intelectualizados que já não seriam compreendidos nem por
alguns pastores, quanto mais pelos membros comuns da igreja e o povo em
geral, numa direção contrária à mensagem simples e direta de Cristo.
Assim, ao invés de tentar fazer discípulos de Armínio ou de Calvino, os
Batistas decidiram dedicar suas vidas para fazer discípulos de Jesus.
Tenho certeza de que esses dois teólogos concordariam que foi a melhor
decisão.
Hoje os Batistas têm grandes desafios diante de si. Assim como no
passado, lutamos contra o liberalismo e por uma sadia formação dos
vocacionados. Entretanto, agora também temos que cumprir a missão do
discipulado numa sociedade pluralista e cada vez mais intolerante ao
Evangelho, o que nos leva ao risco do pragmatismo. Precisamos ensinar
uma cosmovisão cristã aos nossos jovens e enfrentar dentro de nossas
igrejas a desestruturação familiar, o individualismo, as tensões
políticas e a religiosidade.
Não tenho espaço para tentar dizer nestas poucas palavras como lidar com
cada uma destas questões. Uma certeza que tenho é que as respostas só
poderão ser encontradas na Palavra de Deus, com muita oração, sob a
condução do Espírito Santo, e não em métodos humanos. Mas o que os
Batistas antigos têm a nos ensinar é que acreditar que a adoção desta ou
daquela linha soteriológica específica será “a solução” para a igreja é
ilusão.
É importante sempre estar atento se nossa soteriologia está estabelecida
na Palavra e fundamentada na graça, assim como afirmaram os
Reformadores. Mas, não apenas os Batistas, como qualquer crente,
comunidade ou denominação, só será relevante se reconhecer que ainda
mais importante do que se intitular Arminiano ou Calvinista e defender a
sua própria visão é ser discípulo de Jesus e assim querer ser
reconhecido. Isso sim produz união, cooperação, proclamação, amor,
testemunho, fidelidade e consequentemente a glória de Deus.
Fontes:
- O cristianismo através dos séculos: uma história da igreja cristã (Earle E Cairns)
- A celebração do indivíduo: a formação do pensamento Batista Brasileiro (Israel Belo de Azevedo)
- The Baptist Story: from english sect to global movement (Anthony L. Chute)
- Baptists in America: a history (Thomas S. Kidd)
- http://www.reformedreader.org
- http://evangelicalarminians.org
- http://baptiststudiesonline.com
- https://www.baptist.org.uk
PS: Após a publicação deste texto,
percebi que poderia haver o mal-entendido, por parte de algumas pessoas,
no sentido de que haveria uma crítica aos Batistas Reformados. Por
isso, volto em poucas palavras apenas para dizer que creio que os
Batistas Reformados têm muito a contribuir com os Batistas, entre outras
coisas, chamando sua atenção para a necessidade de sempre fundamentar
as doutrinas na Escritura, para o cuidado com a centralidade de Deus no
culto e para os perigos do liberalismo teológico e do pragmatismo.
https://bruno-fae.blogspot.com/2017/11/arminianismo-e-calvinismo-entre-os.html